8.10.08

APRENDER A CONTAR #18

OUTONO


Paula trazia na mão um ramo de cravos.
— Que tomas?
— Um chá de limão.
Pousou as flores em cima do mármore da mesa e, enquanto o marido falava com o criado, olhou de soslaio o grupo onde Alberto, de costas, conversava.
— Quanto tempo tencionas demorar-te na modista?
— Ah, isso não sei. Compreendes que é impossível marcar uma hora certa!
— Claro. Portanto, o melhor é cada um tratar da sua vida. — Acho bem.
— Ora eu tenho de ir ao correio, à repartição de finanças, ao Instituto de Medicina Legal, à secretaria...
Calou-se. De que valia continuar? Paralelas, a vida dele e a da mulher nunca se encontrariam.
— Mais?
— Não. Obrigada.
Serviu-se também de açúcar, e pôs-se a sorver o café, alheado. — São bonitos os teus cravos... — disse, por fim. — Coitados, fazem o que podem! Cravos, no Outono... Ficou sem saber ao certo se era objectivamente dos cravos que ela falava, ou se aproveitara apenas o pretexto para se macerar. E resolveu tactear o terreno.
— Há uma certa beleza nas flores serôdias... Qualquer coisa de simultaneamente irredutível e melancólico... Eu gosto.
Era justamente qualquer coisa de irredutível e melancólico o que ela sentia por Alberto. Um amor desbotado, e apesar de tudo presente, como a cor do ramo.
— Mas que gentileza! Se eu não tivesse um espelho mesmo na minha frente... Assim, chega a ser crueldade.
De facto, não havia ilusão possível. No límpido cristal que a reflectia do outro lado da sala, tudo murchara irremediavelmente. Branca, gorda e deformada, a sua imagem metia pena.
— Eu referia-me aos cravos...
— Ah! Ainda bem.
— O que não quer dizer...
— Pelo amor de Deus!
Alberto continuava de costas, a conversar.
— Vamos?
— Podemos ir.
Enquanto o marido pagava a despesa, ergueu-se e compôs o cabelo.
Já na rua, quando se despediam, foi ele que se lembrou, com alvoroço do ramo esquecido.
— E os cravos?
— Deixei-os lá.

Miguel Torga (1907-1995), Contos, pp. 546-547, Círculo de Leitores, 2002.
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