22.3.07

O escrínio

Um poeta municipal já me chamara a cidade de escrínio.
Que àquele tempo encabulava muito porque eu não sabia o seu significado direito.
Soava como escárnio.
Hoje eu sei que escrínio é coisa relacionada com jóia, cofre de bugigangas…
Por aí assim.
Porém a cidade era em cima de uma pedra branca enorme
E o rio passava lá embaixo com piranhas camalotes pescadores e lanchas carregadas de couros vacuns fedidos.
Primeiro vinha a Rua do Porto: sobrados remontados na ladeira, flamboyants, armazéns de secos e molhados
E mil turcos babaruches nas portas comendo sementes de abóbora…
Depois, subindo a ladeira, vinha a cidade propriamente dita, com a estátua de António Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na orelha
E mais o Cinema Excelsior onde levavam um filme de Tom Mix 35 vezes por mês.
E tudo o mais.
Escrínio entretanto era a Negra Margarida
Boa que nem mulher de santo casto:
Nhanhá mijava na rede porque brincou com fogo de dia
- Mijo de veia não disaparta nosso amor, né benzinho?
-
Yes!
Um dia Nhanhá Gertrudes fazia bolo de arroz.
Negra Margarida socava pilão.
E eu nem sei o que fazia mesmo.
Veio um negro risonho e disse sem perder o riso:
- Vãobora comigo, negra?
E levou Margarida enganchada no dedo pra São Saruê.
Daí eu fiquei naquele casarão que tinha noites de medo. Nhanhá sonhava bobagens que eu fugi de casa pra ser chalaneiro no Porto de Corumbá!
O mijo de Nhanhá sentia, no pingar, um vazio inédito e fazia uma lagoinha boa no mosaico…
Desse tempo adquiri a mania de mirar-me no espelho das águas…

Manoel de Barros

Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, a 19 de Dezembro de 1916. Com oito anos foi para o colégio interno em Campo Grande, e depois no Rio de Janeiro. Conheceu pessoas engajadas na política, leu Marx e entrou para a Juventude Comunista. Passou uns tempos na Bolívia e no Peru, partindo depois para Nova Iorque. Estudou cinema e pintura. O seu primeiro livro, publicado em 1937, foi Poemas Concebidos Sem Pecado. Foi feito artesanalmente por 20 amigos, numa tiragem de 20 exemplares e mais um, que ficou com ele. Hoje o poeta é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século e mais importantes do Brasil. »